Tráfico Privilegiado

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Dosimetria da Pena

O tráfico privilegiado, antes de qualquer coisa, é uma causa de diminuição de pena (minorante).

Lembramos que, no Direito Penal brasileiro, o cálculo da pena é feito em três fases: na primeira, a pena-base é fixada de acordo com o critério do art. 59 do CP; em seguida, são consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento (ou minorantes e majorantes).

Código Penal

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

Como dizíamos, enfim, o tráfico privilegiado é aquele que contou com causa de diminuição de pena. Pode-se dizer que o “acusado é privilegiado”, uma vez que sua conduta, preenchendo os requisitos presentes na Lei, faz que ele merecesse redução de pena.

Para mais informações a respeito da fixação de penas, pode dar uma olhada aqui!

Critérios do art. 33, §4º da Lei nº 11.343

Conforme o § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06 já visto, se o agente for réu primário, de bons antecedentes, que não se dedique a atividades criminosas e que não integre organização criminosa, suas penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços.

Mas o que isso significa? Discorreremos aqui sobre os pontos mais polêmicos dessa disposição.

Réu primário

Réu primário é a pessoa que é condenada por um crime pela primeira vez. Repisa-se que não falamos aqui sobre crimes relacionados a drogas, mas quaisquer crimes. Se o agente já foi condenado por um furto, por exemplo, não é mais réu primário.

Tem-se ainda que, se já foi acusado, mas ainda não condenado em última instância, o Réu continua primário. Afinal, a presunção de inocência é princípio constitucional. Logo, até a condenação em segunda instância, o réu é presumido inocente e, assim, até o trânsito em julgado da condenação, permanece primário.

No mais, temos o Réu que é tecnicamente considerado primário, o que ocorre quando findado o prazo de cinco anos após o cumprimento da pena. Isto é, se o agente foi condenado em todas as possível instâncias e já cumpriu pena, ele tem “apagada” sua falta após cinco anos. Então, caso volte a cometer um delito, é novamente considerado réu primário.

 Atenção: uma vez que os requisitos de tráfico privilegiado são cumulativos, isto é, todos devem ser cumpridos, se o agente não for mais réu primário, não possui direito à redução de pena prevista do § 4º do Art. 33 da Lei 11.343/06.

Bons antecedentes

Já quanto aos bons antecedentes, não há conceito fechado. O que temos são duas correntes doutrinárias:

  1. O conceito de bons antecedentes não decorre exclusivamente da ausência de condenação anterior, hipótese em que identificaria objetivamente a não primariedade. Por exemplo, se o agente já cumpriu a pena e terminou o prazo de cinco anos para que volte a ser considerado Réu primário, pode ainda a sua condenação anterior valer como maus antecedentes. Isto significa somente que a avaliação da antecedência do indivíduo é subjetiva e medida discricionariamente pelo juiz, de acordo com a análise de certos fatores a respeito da pessoa do criminoso.
  2. Apesar de a condenação prévia (ainda que cumprida) poder caracterizar um mau antecedente, existe a teoria do direito ao esquecimento. Isto é, que a condenação da pessoa não a persiga pelo resto da vida. Assim, depois de dado tempo após o término do cumprimento de pena, o indivíduo deveria ter o direito a viver uma vida normal em todos os sentidos possíveis, não sendo taxado por seu passado. Por exemplo, se o agente cometeu um furto, cumpriu sua pena, e se passaram vinte anos, não seria razoável mantê-lo com “maus antecedentes”.

Não se dedicar a atividades criminosas

Por mais incrível que pareça, o terceiro requisito para o direito ao enquadramento no Tráfico Privilegiado é o de não se dedicar a atividades criminosas, que é o mais aberto e subjetivo dos quatro. O conceito por si só é polêmico, amplo e de difícil aplicação, afinal, o que é exatamente o ato de dedicar-se a atividades criminosas? O jovem que trabalha como o chamado “aviãozinho”, apenas fazendo entregas rápidas, merece ter a mesma condenação que o gerente da boca?

É pensando nisso que esse requisito é analisado com muitas reservas, sempre baseando-se no caso concreto, para não prejudicar em demasiado agentes que contribuem pouco na estrutura macro do tráfico. Já decidiu dessa forma o próprio Supremo Tribunal Federal, na decisão do Habeas Corpus 131.795:

HC 131.795 - STF

EMENTA: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DA PENA PREVISTA NO ART. 33, § 4º, DA LEI 11.343/2006. APLICAÇÃO. TRANSPORTE DE DROGA. EXAME DAS CIRCUNSTÂNCIAS DA CONDUTA. ATUAÇÃO DA AGENTE SEM INTEGRAR ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA.

1. A não aplicação da minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 pressupõe a demonstração pelo juízo sentenciante da existência de conjunto probatório apto a afastar ao menos um dos critérios – porquanto autônomos –, descritos no preceito legal: (a) primariedade; (b) bons antecedentes; (c) não dedicação a atividades criminosas; e (d) não integração à organização criminosa. Nesse juízo, não se pode ignorar que a norma em questão tem a clara finalidade de apenar com menor grau de intensidade quem pratica de modo eventual as condutas descritas no art. 33, caput e § 1º, daquele mesmo diploma legal em contraponto ao agente que faz do crime o seu modo de vida, razão pela qual, evidentemente, não estaria apto a usufruir do referido benefício.

2. A atuação da agente no transporte de droga, em atividade denominada “mula”, por si só, não constitui pressuposto de sua dedicação à prática delitiva ou de seu envolvimento com organização criminosa. Impõe-se, para assim concluir, o exame das circunstâncias da conduta, em observância ao princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF).

3. Assim, padece de ilegalidade a decisão do Superior Tribunal de Justiça fundada em premissa de causa e efeito automático, sobretudo se consideradas as premissas fáticas lançadas pela instância ordinária, competente para realizar cognição ampla dos fatos da causa, que revelaram não ser a paciente integrante de organização criminosa ou se dedicar à prática delitiva.

4. Ordem concedida.

(HABEAS CORPUS 131.795 SÃO PAULO; Relator Ministro Teori Zavascki; Segunda Turma STF; jULGAMENTO 03/05/2016)

Integrar oganização criminosa

E esse entendimento leva ao quarto e último requisito: integrar organização criminosa. Compreender que meros transportadores ou guardadores de drogas não se dedicam à atividade criminosa implica compreender que não possuem efetivo envolvimento com a organização criminosa.

Repisa-se se o mero guardador ou transportador é agente criminoso e será julgado como tal. O que falamos aqui é que, por sua função não ser de real envolvimento organizacional dentro da atividade do tráfico, ele não perde o direito de ter sua pena reduzida pelos critérios da modalidade privilegiada.

Resumiremos o tráfico privilegiado, antes de continuarmos nossos estudos, como uma causa especial de diminuição de pena que é aplicada aos réus primários, de bons antecedentes, que não se dedicam às atividades criminosas e não integrem organização criminosa, e que deve ser considerada na terceira fase da dosimetria da pena, na fração de 1/6 a 2/3.

Natureza Hedionda

Veremos agora sobre a possibilidade de atribuir natureza hedionda ao tráfico privilegiado.

Quando se trata de casos em que o tráfico privilegiado está configurado, desde 2014, o entendimento é que o crime tem a natureza hedionda afastada. Isto é, considerando-se todos os requisitos acumulados pelo agente para enquadrar-se na modalidade privilegiada do crime, compreende-se que sua conduta não provocaria a mesma reação de grande indignação moral e repulsa à sociedade, o que é inerente a crimes hediondos.

Ainda nesse sentido é o entendimento passivo do Supremo Tribunal Federal, consolidado em 2016 com o julgamento do Habeas Corpus (HC) 118533. Na sessão em questão, ocorrida em 23 de junho de 2016, a ministra Camen Lúcia, relatora do recurso, votou no sentido de que o tráfico privilegiado não se harmoniza com a qualificação de hediondez do delito definido no caput e no parágrafo 1º do artigo 33 da Lei de Drogas. Ainda mais claro nesse sentido foi o voto do ministro Edson Fachin, que defendeu:

Nesse reexame que eu fiz, considero que a equiparação a crime hediondo não alcança o delito de tráfico na hipótese de incidência da causa de diminuição em exame.

Lembrando que os crimes hediondos, bem como os equiparados, nos termos da Lei 8.072/1990, são considerados inafiançáveis e insuscetíveis de anistia, graça ou indulto, e a progressão de regime só pode acontecer após o cumprimento de dois quintos da pena, se o réu for primário, e de três quintos, se for reincidente. Ou seja, o tráfico privilegiado ter a hediondez afastada é bastante significativo em uma sociedade como a brasileira, na qual estima-se que, entre a população de condenados por crimes de tráfico ou associação ao tráfico, aproximadamente 45% (composta por uma maciça maioria de mulheres) tenham recebido sentença com o reconhecimento explícito do privilégio.

Aplicação da Pena

Passando agora a analisar a aplicação da pena em si, sabemos que a pena do tráfico privilegiado, ao final da dosimetria, deve ficar abaixo do mínimo estipulado para o tráfico de drogas, que é de 5 anos, podendo ser reduzida numa fração que varia de 1/6 a 2/3.

Acrescentamos a este fato, entretanto, que o magistrado não é obrigado a aplicar o máximo de redução de pena pela constatação dos requisitos do parágrafo 4°, artigo 33, da Lei de Drogas. A primariedade, bons antecedentes, não vinculação a organizações criminosas e ausência de prática delitiva habitual serão analisadas também de forma subjetiva pelo julgador, o qual procederá a uma gradação da redução de pena que se faz da seguinte forma:

  • a intenção de obtenção de lucro por parte do agente levaria a uma diminuição das penas no patamar intermediário de 2/5;
  • a efetiva obtenção de tal lucro por meio de significativa apreensão de bens/dinheiro relacionado(s) à prática do tráfico e a serem aferidas caso a caso levaria a uma diminuição das penas no patamar mínimo de 1/6, e
  • a não intenção de obtenção de lucro por parte do agente levaria a uma diminuição das penas no patamar máximo de 2/3.

No mais, afastada a hediondez do crime de tráfico privilegiado, o crime passa não só a ser afiançável como a fração de pena que precisa ser cumprida para progressão de regime passa a ser de apenas um sexto. Ou seja, mais uma vez, em compatibilidade com os princípios do Direito Penal, considerado o crime menos grave, a punição também se faz menos severa ao agente.

Por curiosidade, veja esta interessante matéria que aborda brevemente 20 teses do STJ sobre tráfico.

Uma das maiores conquistas doutrinária e jurisprudencial no que diz respeito ao tráfico privilegiado é a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, vide o trecho do § 4º do Art. 33 da Lei 11.343/06 que foi revogado em 2012, o qual vedava a conversão da pena privativa à restritiva.

O Senado Federal resolve:

Art. 1º É suspensa a execução da expressão "vedada a conversão em penas restritivas de direitos" do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS.

Com a substituição de pena, favorece-se a ressocialização do agente que foi condenado e dá-se a ele tratamento mais proporcional e adequado, uma vez que o sistema prisional brasileiro mais produz reincidentes do que de fato ajuda na reinserção destas pessoas na sociedade.

Nesse sentido, vale uma pequena retrospectiva histórica. Antes da Lei de 2006, uma Política Nacional sobre Drogas fora criada em 2002 com o objetivo de "levantar e diagnosticar as causas e efeitos da violência que assola o país". O projeto de lei que estava para nascer veio com o objetivo de atender à demanda de combate ao tráfico bem como separar meros usuários de traficantes, o que acabou resultando no que hoje consideramos uma lei proibicionista. Afinal, o porte para consumo próprio continuaria sendo crime, mesmo que o agente não seja enquadrado como traficante.

Hoje em dia, a crise penitenciária no Brasil mostra justamente que o encarceramento em massa não representa uma solução para o problema do tráfico, pelo contrário. Para entidades e organizações coletivas da sociedade civil, a visão predominante é justamente que a lei não contribuiu para a redução do tráfico, mas para seu aumento. Restou incontroversa a ineficácia da lei quanto ao objetivo de guerra às drogas.

Assim sendo, a conquista do direito à conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos é vista como um grande avanço para a redução do tráfico, tendo o “encarceramento pelo encarceramento” se provado ineficiente e contraproducente.

Por esse motivo, quando o juiz decide fugir à regra de conversão do regime de cumprimento de pena de fechado para aberto, mesmo em casos de tráfico privilegiado, é necessária uma justificativa plausível. Pois a previsão legal de regime, em caso de penas até quatro anos, é de regime aberto.

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