Lei x Caso Abstrato e Raciocínio Jurídico (Evolução)

Caso prático e aplicação da hermenêutica

A hermenêutica é que aproxima os comandos previstos na lei às particularidades do fato social, ou seja, torna possível a aplicação do que é abstrato e geral a um evento da vida real.

Pensando em termos de exemplo, temos o caso da união homoafetiva, ou seja, a união entre pessoas do mesmo sexo. Há cinquenta anos, a sociedade não debatia, defendia, nem demandava a aceitação deste direito. Mas esta situação mudou.

E isso se dá pois, se o indivíduo muda, a sociedade acompanha o pensamento do homem, e a sociedade também muda. O direito, que regula a vida em sociedade, tem que acompanhar esta mudança. Assim, a lei deve expressar esta mudança para que o direito alcançe todos os que estão na sociedade, não deixando ninguém de fora.

Onde a hermenêutica entra nisso tudo? Pensemos: a Constituição Federal art. 226, § 3° estabelece a entidade familiar como sendo a união entre homem e mulher, garantindo a esta a proteção do Estado. Numa leitura fria, este artigo exclui os casais homoafetivos da proteção jurídica.

Porém, a mesma Constituição Federal, no caput do art. 5°, estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e no artigo 3º, inciso IV, veda qualquer espécie de discriminação em virtude de sexo, raça, cor. A Constituição se contradiz? Ela não concorda consigo mesma?

Talvez em alguns casos, mas não neste. É que a Constituição, embora não preveja tudo, estabelece princípios para que o intéprete os aplique e procure soluções integrativas, ou seja, soluções que façam a Constituição ser aplicada de modo coerente.

No caso da união entre dois homens, ou duas mulheres, não havendo lei que trate deste tema, eles estão à margem da proteção do estado, correto? É aí que a hermenêutica entra em ação.

Ao julgar a ADIn 4277 e a ADPF 132, que buscavam a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, o Supremo Tribunal Federal atua como hermeneuta, aumentando o alcance desta lei a fim de dar coerência ao ordenamento jurídico.

Assim, ao decidir de modo favorável à união homoafetiva, o Supremo Tribunal Federal aplica a hermenêutica com base no princípio da igualdade, ou da isonomia, do art. 5° da Constituição Federal de 1988, e da não discriminação do art. 3°, inciso IV. Com esta decisão, o STF atualiza a compreensão do texto da lei às demandas da sociedade que o lê.

A hermenêutica faz uma interpretação de ajustamento da lei à realidade dinâmica do fato social. Este trabalho é o que permite que os fatos sociais passem do status de surpresa para a lei para o status de direito legalmente reconhecido.

Exemplo disto é que, 6 anos após a decisão do Supremo Tribunal Federal, no dia 5 de maio de 2011, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado – CCJ, aprovou o projeto que permite o reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo, Projeto de Lei do Senado 612/2011[1].

Breve histórico do pensamento jurídico

O pensamento jurídico reflete a intepretação do direito à sua época. E como esta interpretação evolui, o pensamento jurídico evolui. Como dissemos na aula anterior, o indivíduo muda, e com ele muda a sociedade e a forma de interpretar as leis.

Vamos dividir o pensamento jurídico em três fases:

  1. a Fase da Exegese;
  2. A Fase Crítica;
  3. A Pós-Modernidade.

A Escola da Exegese tem seu desenvolvimento marcado pelo período posterior à Revolução Francesa. Período em que os cidadãos franceses tinham acabado de conquistar alguns direitos e partilhavam um temor, um medo da tirania. E tinha medo deste tipo de política pois na tirania, apenas uma pessoa, o tirano, é que interpretava a lei.

Assim, a Escola da Exegese deposita sua confiança na lei, não admitindo interpretação justamente por conta deste medo de que esta intepretação fosse contrária ao povo. Daí o brocardo jurídico dura lex, sed lex, a lei é dura, mas é a lei, revelando o caráter absoluto da lei.

Na segunda fase, com os direitos já consolidados, o povo perde um pouco do medo de interpretar a lei, e se questiona se a lei ainda protege os direitos do povo, ou se, pelo passar do tempo, ela não ficou obsoleta. Por isto essa fase é chamada de Fase Crítica. Nesta fase, os homens passam a admitir contestar as falhas da lei ainda que não tenham uma resposta para solucionar estas falhas.

Por fim, chegamos à terceira fase, a que vigora nos dias de hoje. Nesta fase chamada de Pós-Modernidade, os homens concluem o que faltava para a lei, quais eram suas falhas. É aí que descobrem o que eles pretendem que a lei promova, e isto é a justiça. É neste ponto que aparece a hermenêutica, como uma ferramenta para fazer a relação entre a lei e o que é justo.

O caso concreto passa a ser importante na hora de julgar se esta ou aquela lei é justa. A hermenêutica ajuda as pessoas a completarem as lacunas da lei para que ela abranja o caso concreto e garanta o direito. Sem isso, a lei não poderá estabelecer a justiça.

Sobre isto, o jurista uruguaio Eduardo Juan Couture diz “quando você tiver que decidir entre uma regra de direito e uma regra de justiça, opte sempre pela segunda”. Este pensamento resumo o momento atual do pensamento jurídico. A lei é legítima se for eficaz em proteger o direito, se for capaz de realizar a justiça para o caso concreto.

Assim, o pensamento jurídico evolui de uma época em que a lei era absoluta, com a Fase da Exegese, passa por uma fase em que se percebeu que a lei poderia e deveria ser questionada, na Fase Crítica, até chegar aos dias atuais, a Pós-Modernidade, fase em que a lei admite interpretação, a lei pode ser flexibilizada para que se insira aqueles que estão fora da sua proteção dada a evolução da sociedade.

É isso.  

 

[1]             Projeto de Lei do Senado 612/2011.Ementa: Altera os arts. 1.723 e 1.726 do Código Civil, para permitir o reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Explicação da Ementa: Altera a redação do art. 1.723 da Lei nº 10.406/02 (Código Civil) para reconhecer como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família; altera a redação do art. 1.726 da referida Lei para prever que a união estável poderá converter-se em casamento, mediante requerimento formulado dos companheiros ao oficial do Registro Civil, no qual declarem que não têm impedimentos para casar e indiquem o regime de bens que passam a adotar, dispensada a celebração, produzindo efeitos a partir da data do registro do casamento. Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/102589>.

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