Surgimento da Responsabilidade Civil Objetiva

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DA CULPA AO RISCO

MODELO DUAL OU BINÁRIO DE RESPONSABILIDADE

 Esse curso foi baseado nas obras de Alvino Lima, Otávio Luiz Rodrigues Júnior, Patrícia Iglecias, Fernando Scaff e Teresa Ancona Lopes.

Será tomado como premissa que o modelo dual ou binário de responsabilidade, a clássica diferenciação entre responsabilidade contratual e extracontratual persiste no texto do Código Civil de 2002. O descumprimento ou cumprimento defeituoso de um contrato é abordado nos artigos 389 e seguintes do CC/2002. A responsabilidade extracontratual ou aquiliana, por sua vez, está fundada no ato ilícito de que trata o artigo 186 e no abuso de direito, previsto no artigo 187.

Essa divisão sofre inúmeras críticas pela doutrina. Judith Martins-Costa sustenta que esse modelo binário não resiste à constatação de que, na moderna sociedade de pessoas, as responsabilidades contratual e extracontratual têm, a rigor, uma mesma fonte: o contrato social. Além disso, obedecem aos mesmos princípios, nascendo de um mesmo fato, qual seja, a violação de um dever jurídico preexistente.

Na mesma linha, Sílvio de Sálvio Venosa afirma que tanto a responsabilidade contratual quanto a extracontratual com frequência se interpenetram e, ontologicamente, não são distintas. Ou seja, quem transgride um dever de conduta, com ou sem negócio jurídico, pode ser obrigado a reparar o dano. O dever violado será o ponto de partida, não importando se dentro ou fora de uma relação contratual.

Apesar dessas críticas, a classificação ainda encontra guarida no CC/2002. Quando a doutrina se refere apenas à responsabilidade civil, sem qualificá-la, deve-se entender que se trata da responsabilidade extracontratual.

PANORAMA DA EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE

Traçando-se uma linha evolutiva, parte-se da teoria clássica da culpa, que é a espinha dorsal da responsabilidade civil nas legislações modernas para a teoria do risco, a qual parece responder melhor às características de uma sociedade em acelerado progresso tecnológico e científico.

A responsabilidade com culpa tem origem no direito justinianeu. O Código Civil napoleônico aperfeiçoou as regras do direito romano e traduziu, no seu artigo 1382, o princípio geral de responsabilidade, que reclama a culpa efetiva e provada como fundamento. Importante ressaltar que o conceito de culpa não é uniforme.

Diversas razões de ordem material, econômica, social, ética e política, precipitaram a evolução da responsabilidade civil para adaptá-la a uma nova realidade produtora de danos, que Ulrich Beck chamou, em 1986, na Alemanha, de “sociedade de risco”. As causas materiais dessa mudança são os inventos mecânicos, as estradas de ferro, automóveis, maquinismo em geral, bem como o crescimento demográfico, os quais causaram situações jurídicas novas que exigiram as primeiras respostas legislativas específicas, rompendo com a tradição clássica da culpa.

Depois, pode-se citar a massificação e a assimetria das relações de consumo da produção em escala, a evolução da biotecnologia, a conscientização de que os recursos naturais são limitados e precisam ser tutelados como bens intergeracionais.

CENÁRIO BRASILEIRO

A enumeração de causas acima realizada não é simplesmente senso comum. Pode-se confrontá-la com as sucessivas alterações legislativas. O Decreto nº 2.681 de 1912 adotou expressamente a responsabilidade civil objetiva das estradas de ferro, que somente poderia ser elidida por força maior ou culpa do viajante.

Tal decreto impôs também a responsabilidade da estrada de ferro pelos danos causados aos proprietários marginais, admitindo como única cláusula excludente a infração direta do proprietário atingido pelo evento danoso.

Mais tarde, sobrevieram leis esparsas, como a Lei de Acidentes de Trabalho, as Leis de Responsabilidade Civil das Aeronaves, Lei de Responsabilidade Civil por Danos Nucleares e da Responsabilidade Civil das Agências de Empregados.

À parte da edição de leis especiais que, setorialmente, mitigaram a exigência de culpa para acompanhar esses perigos da sociedade que é tracionada por máquinas de todos os tipos, não se pode esquecer que o grande passo para situar o risco da atividade como fundamento da responsabilidade civil ocorreu com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, visto como uma das leis mais modernas e protetivas de um modelo fundado em relações privadas massificadas e assimétricas.

Por fim, apesar da adoção da teoria da culpa como orientação geral no Código Civil de 2002, a responsabilidade fundada no risco foi consagrada na cláusula geral do parágrafo único do artigo 927, segundo o qual haverá obrigação de indenizar, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano, por sua natureza, criar risco.

DA RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL SOB O FUNDAMENTO DA CULPA

RESPONSABILIDADE AQUILIANA

A base para esse estudo será a tese defendida pelo professor Alvino Ferreira Lima no concurso para a cátedra de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP, em 1938.

REQUISITOS

Os requisitos essenciais que integram a responsabilidade aquiliana segundo a teoria clássica são: a conduta violadora do direito de outrem, o dano produzido por essa conduta, a relação de causalidade entre a conduta e o dano e, por fim, a culpa. Dentre os elementos citados, a culpa é o que demanda a maior atenção, pois há diversas definições, dúvidas e negativas sobre a possibilidade de defini-la juridicamente.

Demogue, Pierre de Harven, Jacques Bichot e Savatier, entre outros, veem na culpa um ato violador do direito de outrem, praticado com negligência ou imprudência. Há dois elementos: um objetivo e outro subjetivo. A grande crítica feita a essa definição é que ela não distingue com clareza a culpa com ato ilícito.

Ferrini, Henri de Page, Leon e Henri Mazeaud, Esmein e Simoncelli referem à ordinária diligência do bonus pater familias a aferição dessa culpa. Para essa vertente, a culpa reside em um desvio não intencional da conduta normal que teria o bonus pater famílias se tivesse agido no caso concreto a ser considerado.

Chironi e Abello afirmam que a culpa é um desvio de uma dada regra de conduta imputável a pessoa que era obrigada a obedecê-la.

Alvino Lima, combinando os ensinamentos dos irmãos Mazeaud, Chironi e Abello, conceitua a culpa como um erro de conduta moralmente imputável ao agente e que não seria cometido por uma pessoa avisada em iguais circunstâncias de fato.

O erro de conduta é aferido sem grandes dificuldades caso exista a violação de uma determinação específica e taxativa de lei, de modo que o desvio se caracteriza por si mesmo. Mas se a obrigação violada é genérica de prudência e diligência é preciso definir se a conduta do agente do ato lesivo deve ser apreciada em concreto, considerando-se suas características pessoais ou em abstrato, tendo em conta a conduta do homem abstratamente diligente e prudente.

Prevalece na doutrina o princípio da aplicação da culpa em abstrato, mas não de forma absoluta, porque elementos concretos também são levados em consideração, colocando-se o tipo de comparação nas mesmas condições do autor do ato ilícito. Resumindo, o conceito da culpa depende do agir normal do homem, adaptado à vida social e ao ambiente em que ele vive.

Ante uma violação concreta do direito de outrem, apuram-se dano e causalidade. A seguir, é necessário indagar se o agente observou as circunstâncias que o rodeavam, como atuaria um homem prudente.

Essa concessão da culpa em abstrato nos permite falar do sistema de imputabilidade moral, que pressupõe a capacidade delitual do agente. Para os autores que defendem essa teoria, é necessário ao menos que o agente seja capaz de apreciar os limites da conduta normal, uma vez que as suas condições pessoais e o seu estado de consciência não são considerados.

Para que se configure a imputabilidade moral, não é necessário verificar o estado de ânimo do agente. Basta verificar se o tipo abstrato é conhecido e valorado pelo autor do dano, e se este poderia agir em virtude de sua inteligência, como age o bonus pater famílias.

A teoria clássica da culpa, portanto, considera a imputabilidade moral somada à prova de negligência, imprudência ou imperícia. A tendência, entretanto, é de se objetivar o conceito de culpa.

SURGIMENTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA

Serão destacados os pontos relevantes de um artigo publicado pelos professores Fernando Scaff e Patricia Iglecias, intitulado “Da culpa ao risco na responsabilidade civil”. 

Dentre as dificuldades, duas podem ser destacadas: o exercício da jurisdição pressupõe a movimentação de uma complexa e cara burocracia para que sejam cumpridos os ritos processuais e o dilema sobre o conjunto de meios suficientes para a decisão judicial justa e em tempo oportuno (justiça rápida x justiça refletida).

No Brasil prevalece a justiça refletida, com extensa dilação probatória, análise recursal, contraditório e ampla defesa. Entretanto, surgem casos específicos que demandam novos meios para que a justiça se realize de modo mais eficiente – as presunções, que permitem acolher, em situação de dúvida, o pedido de reparação do dano sofrido, sob certas circunstâncias e reconhecidas determinadas fragilidades da vítima.

Há alguns degraus de dificuldade para o reconhecimento do direito de reparação de um dano. No caso da responsabilidade civil subjetiva, a comprovação dos quatro requisitos já expostos.

Há uma exceção à regra: a inversão do ônus da prova, pela qual é mantida a necessidade de demonstração dos quatro elementos, mas sendo presumida a superioridade de uma das partes e transferindo a ela, ex lege ou por obra do juiz, o encargo de demonstrar a ausência de algum dos elementos.

Um passo importante da nossa linha evolutiva é o reconhecimento de situações em que a culpa, pelo contexto, é efetivamente provada, o que torna desnecessária a discussão sobre sua existência ou não. A ideia surge a partir dos estudos de Karl Binding sobre a responsabilidade criminal, pela constatação de hipóteses de reparação civil de atos que não constituíam propriamente delitos criminais, já que não constatada a culpa.

Em outras palavras, Binding construiu uma teoria de que a responsabilidade civil dispensa o elemento vontade para obrigar a indenizar. Desse modo, o dano e a reparação não são aferidos pela medida da culpabilidade, mas devem surgir exclusivamente do fato causador da lesão a um bem jurídico.

Nesse movimento é possível identificar ainda a influência do positivismo, que nega a influência dos elementos morais no problema da responsabilidade. De igual forma, tem-se a ideia de socialização do direito, de modo que para além dos interesses de ordem individual deve ser considerado o equilíbrio individual. São precursores dessa teoria: Ennerccerus, Coviello, De Cupis, Saleilles e Louis Josserand.

Chega-se, assim, à responsabilidade civil objetiva. Nesses casos, importante ressalvar que não haverá necessariamente o ressarcimento do dano por aquele que é demandado, pois, mesmo sendo dispensada a demonstração da culpa, permanece necessária a comprovação da conduta, do dano e do nexo causal.

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